segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Scarface

Por Vinicius Libardoni

Era outono do ano de 1930. Figuras ilustres se amontoavam as portas do Teatro Paramount. O frio estava presente na elegância de cada indivíduo.  La dentro, o clima ameno e a tranquilidade das vozes permeavam os murmúrios que preenchiam aquele foyer. Nada, naquele instante, poderia anunciar a cena que em breve sucederia, marcando o início deste relato.

O jovem escritor Armitage Trail, sentado comodamente em uma poltrona azul aveludada, falecia repentinamente de um ataque cardíaco. Tinha apenas vinte e oito outonos presenciados, dos quais, a maioria passou despercebida. As folhas amarelas, que do lado de fora na 43th Street caiam, pareciam acompanhar o carro fúnebre negro que, horas depois, passava pela Times Square.

Antes deste terrível acidente, se assim podemos chama-lo, uma novela intitulada Scarface havia sido composta pela mente aguçada daquele defunto do Teatro Paramount.

Neste momento mudamos radicalmente o nosso foco do carro fúnebre que atravessava New York no outono de 1930 para outro indivíduo, que a esta altura, estava tão vivo quanto eu e você.

Ben Hecht tinha então 38 anos. Além de novelista, como nosso falecido amigo, foi roteirista, diretor, produtor e foi até chamado de “Shakespeare de Hollywood”. Entretanto, nosso interesse não está nos méritos de Hecht, e sim em sua criatividade.

Ben adaptou a novela de Armitage Trail para ao roteiro do que viria a ser um dos melhores filmes gângsteres de todos os tempos. Scarface foi o primeiro grande filme dirigido por Howard Hawks, em 1932. Um clássico.
Scarface deveria ser o próximo filme para aqueles que tanto admiram este gênero. Francis Ford Copolla, Sergio Leone, Martin Scorsese ou até Brian De Palma não são os únicos que fizeram bons filmes. Não pensem que prefiro um ao outro. Não é questão de preferência e sim de referência.

Tenho certeza que Hawks foi, e ainda é uma grande referência para todo bom diretor. Scarface é um filme. Um filme dirigido com maestria, um filme que contém todas as características de um bom filme do gênero. Um filme de 1932 que deveria ser visto antes que o próximo nomeado a Cannes. Aliás, é isso que mais me enche a paciência, esse desejo incessante por novidade, sendo que tal novidade não contém nada de novo.

Esse é um dos grandes problemas que enfrentamos hoje, uma mania absurda por novidade quando o que mais importa são as referências, e como elas são interpretadas. Qual o prazer maior que ver um bom novo filme e compreender pessoalmente quais são as referências implícitas em cada plano sequencia?

Não pretendo aqui ficar me alterando quando o foco é apenas dar uma sugestão a quem procura. O filme de Howard Hawks fala por si só, não cabem aqui explicações, pois as mesmas são desnecessárias.

Falando em referências, modismos e bons filmes, volto a um diretor anteriormente citado. Brian De Palma, nascido em 1940, tinha apenas oito anos quando Scarface foi a atração principal nas salas de cinema americano. O motivo que o levou a reinterpretar a Obra de Hawks eu não sei. Somente me comove, com alegria, a referência ao maestro e a Ben Hecht que está estampada explicitamente no final das quase três horas do filme Scarface de 1983.

Reinterpretar uma obra deste calibre é, de fato, uma tarefa muito delicada. Porém, me dedico a escrever bons comentários e deixo as críticas para quem realmente entende do assunto. Embora a trama seja distinta, existe uma sutileza de detalhes que enriquecem a obra anterior. Acredito que é neste ponto que reside a verdadeira contribuição, pois o retrato colabora com a compreensão do retratado.

Os personagens constroem outras personalidades, pois, os tempos são outros, as cobiças são diversas o contexto é divergente do anterior. Qualquer tentativa de recriar um personagem seria uma caricatura superficial, porém, Brian é inteligente, ele recria a essência do roteiro por caminhos bastante diversos. Até chegamos a acreditar que o futuro de alguns será diferente porque a própria expectativa do expectador é diferente. Mais a referência estava completa, não existe a necessidade de se alterar a finalidade, somente o caminho.

O cinema de Hawks é puro. Nem tudo é dito ou explicitado. A essência de seu cinema permite a cada individuo sentir-se parte da trama, em desejar alterar a ordem das coisas. Brian De Palma altera a ordem dos fatos, joga com os acontecimentos e consequentemente com as expectativas e esperanças de quem assiste ao filme.

Brian é mais evidente, ele deveria ser. De nada adianta utilizar-se da mesma linha de tempo, isso tornaria o filme um tédio. Ele dá espaço a novas formulações enquanto entrega rapidamente aquilo que foi dado lentamente no Scarface anterior. Todos os fatos tem uma intensidade muito maior no filme de 1983, às vezes até um quanto exagerada. É típico de o cinema novo cometer exageros, porém, nada que estrague todo o brilho da história.

A evidencia dos fatos no cinema de Brian De Palma se contrapõe a sutileza dos acontecimentos no cinema de Howard Hawks. Antigamente as pessoas iam várias vezes ao cinema assistir ao mesmo filme, e ele continuava apresentando novos detalhes, novas mensagens, causando surpresa. A pesar de tudo, só me resta aplaudir as boas releituras de filmes clássicos como este, e aguardar ansiosamente por um título que possa se repetir na minha lista de filmes preferidos. “Porque eu sempre digo a verdade, até mesmo quando minto”.




Scarface. Direção: Howard Hawks. Produção: Howard Hughes. Roteiro: Ben Hecht. Baseado na Novela Scarface de Armitage Trail. Estúdio: The Caddo Company. Distribuição: United Artists. Estados Unidos 09 de Abril de 1932. 93 min.
Scarface. Direção: Brian De Palma. Produção: Martin Bregman. Escritor: Oliver Stone. Distribuição: Universal Pictures. Estados Unidos 09 de Dezembro de 1983. 170 min.

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