quarta-feira, 26 de setembro de 2012

nostalgia de um passado ainda futuro


Der Himmel über Berlin (Wings of Desire), ou “Asas do Desejo” é nome de um filme dirigido por Wim Wenders a partir de um roteiro realizado em colaboração com Peter Handke. Conta a história de dois anjos que deambulam pela Berlim do pós guerra. Invisíveis, os anjos tentam confortar os pensamentos solitários e depressivos dos humanos tão humanos daquela época. Porém, o que mais nos interessa aqui é a imagem da cidade, a própria realização cinematográfica na representação da realidade.











Muitas vezes, principalmente através do cinema, a representação da realidade passa de um mero simulacro de sua própria existência para transformar-se na essência da realidade imaginada. Ou seja, ainda que muitas pessoas nunca tenham ido a Berlim, existe uma imagem que faz parte da construção imaginária dos indivíduos. Esta imagem imaginária é fruto da representação da realidade que nos é apresentada nas mais diversas formas, sendo o cinema uma das mais importantes. Digo que seja das mais importantes, pois, é através da fotografia em movimento que surgiram as mais belas e interessantes representações e reproduções do espaço real, possibilitando a alusão, ilusão e a imaginação da realidade a partir de uma mera simulação.

Justamente através da dimensão do tempo, que aparece com o cinema, que é possível a melhor compreensão do espaço. Vai além da fotografia estática, cria uma atmosfera que possibilita aos sujeitos uma construção real na memória a partir de uma simulação.

O filme de Wenders é, acima de tudo, um documentário histórico do que foi a Berlim do final dos anos 80. A representação da cidade, enfim, é uma memória que perdura na imaginação das pessoas. É a reprodução infinita, de uma cidade que já não existe, no consciente coletivo, na capacidade imaginaria dos seres humanos. Quando penso que conhecer algo é produzir tempo na memória, parece que a cidade extinta, representada no filme, se multiplica em cada telespectador, crescendo infinitamente como se ainda existisse.

Às vezes, o filme transforma o pesado muro que castigava aquela cidade em algo belo. A partir do momento que todo sofrimento é passado, aquela imagem é quase nostálgica e agradável, principalmente por saber que sua existência já foi superada por um futuro belo e exemplar. Despretensiosamente diria que, o antigo muro parece ser hoje um instrumento da mudança, em uma espécie de causa e efeito. Provavelmente isso seja apena um devaneio sem sentido.

Deste modo, penso no que foi escrito anteriormente. Que o Elevado Presidente Arthur da Costa e Silva, o famoso “minhocão” seja o nosso muro de Berlim. Parece-me muito interessante que os documentários realizados possam contar a trajetória de tão horroroso objeto, que possibilite os indivíduos de hoje, e principalmente os de amanhã, a situarem no seu imaginário um objeto que quiçá, deixará de existir em algumas décadas.

Tudo me faz acreditar que o elevado é realmente um muro. Embora não seja um limite físico, se configura como um limite sócio-espacial, econômico, um espaço de transição entre duas cidades bastante distintas. Talvez esta divisão existisse de qualquer modo, como ela existe em toda a cidade, ainda que de modo mais ameno. O minhocão aproxima incrivelmente as realidades opostas e as distancia tanto quando é possível imaginar.

Diferentemente do muro, onde o vazio estava repleto de militares, o nosso vazio está repleto de automóveis. Na verdade não sei o que é pior. Pois, algo que foi construído simplesmente para dar passagem a automóveis individuais, passando literalmente por cima da cidade e dos pedestres, é tão agressivo quanto um bando de militares armados preparados para atirar em quem se aproxime.

Observo a esse pesado fardo que a cidade carrega já com certa nostalgia. Nas fotos antigas o minhocão até parecia mais ameno. O vejo, como já foi dito, como um instrumento de mudança, um exemplo a não ser seguido, algo a ser combatido, aprimorado, repensado. Penso em como a cidade seria bela sem ele, ou pelo menos sem os automóveis. Acredito que o minhocão hoje é uma ferramenta da mudança, pois, se podemos lidar com um monstro de concreto que divide a nossa cidade e seus habitantes, quão mais fácil será lidar com uma cidade aberta, continua e inclusiva.

Penso no elevado já como um documento histórico das obras faraônicas dos anos de ditadura militar. Penso como uma ilusão de uma realidade distinta, como um filme que documenta algo sem nos mostrar o caminho, e somos nós a imaginar as possibilidades que se encontram ocultas hoje para realiza-las amanhã.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Minhocão, nosso muro de Berlim


Por Vinicius Libardoni

No caminho intelectual que transcorre a vida de um sujeito, encontram-se questões que geram reflexões diversas, construtoras de conhecimento e opinião. Muitas ideias que as coisas suscitam nos indivíduos nem sempre são conclusas ou remetem claridade e objetividade. Pra ser sincero, os assuntos que mais nos fazem pensar são aqueles que não resultam em algo concreto, em algo definido.

Encontrei-me com o Minhocão tantas vezes antes de empreender qualquer reflexão. Embora seja um elemento marcante na paisagem da cidade, é fato que segue sendo uma pista elevada, uma infraestrutura urbana como tantas outras. Verdade que aquela pista sinuosa que flutua sob a paisagem urbana permite diversas percepções da cidade. O ruído que ecoa nas paredes e janelas dos edifícios vizinhos parece destroça-los aos poucos, deixando a cada ano mais e mais vidraças quebradas e edifícios mortos, abandonados. Logicamente este gigante de concreto não é o morador contíguo mais desejado para seus habitantes. E nessa batalha diária com folgas aos domingos, o minhocão não desiste de sua rotina barulhenta e degradante. Com o tempo, os moradores de áreas adjacentes vão desistindo da luta e o muro vai ganhando envergadura.

O minhocão já não é somente um eixo viário, uma via elevada. É uma linha clara de ruptura com o tecido urbano, uma faixa que segrega cidades completamente distintas. Não sei se ele impede que a cidade alta invada a cidade baixa ou se repele os moradores indesejados dos bairros chiques. Não se sabe bem como opera essa muralha invisível. O fato é essa espessa linha tem forte impacto em seu entorno imediato.

Não diria que o muro de Berlin fora concebido como um território especulativo, nem mesmo o minhocão. Aqueles eram tempos de conflitos ideológicos muito mais complexos e, em nosso caso, o futuro vinha sobre rodas pneumáticas e era preciso multiplicar suas vias de acesso. Como o muro germânico, que dividia dois mundos antagônicos, o elevado não deixa de ser um grande vazio, proibido, intransitável, inacessível, ausente de pessoas, de atividades, de vida urbana. O muro era um limite intransponível, concreto. O elevado se transformou em um limite invisível de duas cidades antagônicas. É como a sombra que impede que a grama cresça, ou seja, na sombra do minhocão são os edifícios que não podem florescer.

É verdade que em uma cidade de dimensões como São Paulo, onde milhões de pessoas convivem com algum tipo de carência, não se podem desperdiçar os espaços urbanizados, dotados de infraestrutura, serviços e equipamentos públicos, acessibilidade e ofertas de emprego. Ainda que a degradação de seu entorno imediato permita a uma população de menor renda habitar um local central extremamente valorizado, essa não pode ser uma justificativa. Muito menos se uma possível transformação da área impeça esta população de permanecer no local, em uma dinâmica típica de gentrificação.

Se o elevado vai permanecer ou vai ser removido não é o foco da questão. O ponto principal deve ser mais uma questão para refletir. Que à população de baixa renda só reste a moradia em áreas degradadas e ainda estejam a mercê de uma futura expulsão causada por qualquer investimento na região, essa sim deve ser a questão do nosso foco. Dispomos de ferramentas técnicas que permitem lidar com a situação de ruído, de propor uma arquitetura adequada que transponha as limitações e permita transformar uma imensa faixa do centro em um espaço mais aprazível.

É obvio que o minhocão, e toda a vizinhança que ele arrasta consigo, se configuram como um território especulativo. Uma enorme faixa que simplesmente atravessa o centro de São Paulo (uma região extremamente valorizada da cidade). Se o minhocão fosse um High Line Park, uma espécie de parque urbano, promovendo conexões com os novos edifícios que seriam projetados, qualificando uma área atualmente carente de praças e áreas verdes a situação se transformaria da água para o vinho. Logicamente seria uma explosão de valorização dos imóveis da região, que vale a pena lembrar, já é extremamente valorizada. Uma transformação gigantesca, todos gostariam de morar em uma área próxima de tudo, dentro do centro e de frente para um parque. O mesmo aconteceria, embora em diferentes proporções, se o elevado recebesse um veículo leve sobre trilhos, ou até se fosse removido completamente. Continua e sempre será uma imensa faixa de território especulativo.

A visão estigmatizada da região parece imperar na consciência coletiva. Pinta como algo sem solução e assim se encontra, esquecida, deixada de lado. São centenas de terrenos, milhares de projetos para uma cidade possível. Poderíamos propor moradia digna à população de baixa, qualificar uma região inteira, promover novos usos, áreas verdes e espaços públicos, pensar sistemas alternativos de transporte e potencializar a acessibilidade e mobilidade urbana. Fazer com que essa imensa faixa degradada do centro pudesse se reinventar e pudesse conviver com as limitações que o elevado impõe e ainda assim, pudesse conviver perfeitamente com uma futura remoção ou transformação para outro uso. Atualmente, é preferível que o elevado permaneça no local, ocultando a falta de criatividade dos arquitetos que são incapazes de lidar com tão delicada situação.

Veja também o ótimo texto "Minhocão e suas múltiplas interpretações" de Eliana Rosa de Queiroz Barbosa publicada no portal Vitruvius.