Por Vinicius Libardoni
No caminho intelectual que transcorre a vida de um sujeito,
encontram-se questões que geram reflexões diversas, construtoras de
conhecimento e opinião. Muitas ideias que as coisas suscitam nos indivíduos nem
sempre são conclusas ou remetem claridade e objetividade. Pra ser sincero, os
assuntos que mais nos fazem pensar são aqueles que não resultam em algo
concreto, em algo definido.
Encontrei-me com o Minhocão tantas vezes antes de empreender
qualquer reflexão. Embora seja um elemento marcante na paisagem da cidade, é
fato que segue sendo uma pista elevada, uma infraestrutura urbana como tantas
outras. Verdade que aquela pista sinuosa que flutua sob a paisagem urbana
permite diversas percepções da cidade. O ruído que ecoa nas paredes e janelas
dos edifícios vizinhos parece destroça-los aos poucos, deixando a cada ano mais
e mais vidraças quebradas e edifícios mortos, abandonados. Logicamente este
gigante de concreto não é o morador contíguo mais desejado para seus
habitantes. E nessa batalha diária com folgas aos domingos, o minhocão não
desiste de sua rotina barulhenta e degradante. Com o tempo, os moradores de
áreas adjacentes vão desistindo da luta e o muro vai ganhando envergadura.
O minhocão já não é somente um eixo viário, uma via elevada.
É uma linha clara de ruptura com o tecido urbano, uma faixa que segrega cidades
completamente distintas. Não sei se ele impede que a cidade alta invada a
cidade baixa ou se repele os moradores indesejados dos bairros chiques. Não se
sabe bem como opera essa muralha invisível. O fato é essa espessa linha tem
forte impacto em seu entorno imediato.
Não diria que o muro de Berlin fora concebido como um
território especulativo, nem mesmo o minhocão. Aqueles eram tempos de conflitos
ideológicos muito mais complexos e, em nosso caso, o futuro vinha sobre rodas
pneumáticas e era preciso multiplicar suas vias de acesso. Como o muro
germânico, que dividia dois mundos antagônicos, o elevado não deixa de ser um
grande vazio, proibido, intransitável, inacessível, ausente de pessoas, de
atividades, de vida urbana. O muro era um limite intransponível, concreto. O
elevado se transformou em um limite invisível de duas cidades antagônicas. É
como a sombra que impede que a grama cresça, ou seja, na sombra do minhocão são
os edifícios que não podem florescer.
É verdade que em uma cidade de dimensões como São Paulo,
onde milhões de pessoas convivem com algum tipo de carência, não se podem
desperdiçar os espaços urbanizados, dotados de infraestrutura, serviços e
equipamentos públicos, acessibilidade e ofertas de emprego. Ainda que a
degradação de seu entorno imediato permita a uma população de menor renda
habitar um local central extremamente valorizado, essa não pode ser uma
justificativa. Muito menos se uma possível transformação da área impeça esta
população de permanecer no local, em uma dinâmica típica de gentrificação.
Se o elevado vai permanecer ou vai ser removido não é o foco
da questão. O ponto principal deve ser mais uma questão para refletir. Que à
população de baixa renda só reste a moradia em áreas degradadas e ainda estejam
a mercê de uma futura expulsão causada por qualquer investimento na região,
essa sim deve ser a questão do nosso foco. Dispomos de ferramentas técnicas que
permitem lidar com a situação de ruído, de propor uma arquitetura adequada que
transponha as limitações e permita transformar uma imensa faixa do centro em um
espaço mais aprazível.
É obvio que o minhocão, e toda a vizinhança que ele arrasta
consigo, se configuram como um território especulativo. Uma enorme faixa que
simplesmente atravessa o centro de São Paulo (uma região extremamente
valorizada da cidade). Se o minhocão fosse um High Line Park, uma espécie de parque urbano, promovendo conexões
com os novos edifícios que seriam projetados, qualificando uma área atualmente
carente de praças e áreas verdes a situação se transformaria da água para o
vinho. Logicamente seria uma explosão de valorização dos imóveis da região, que
vale a pena lembrar, já é extremamente valorizada. Uma transformação
gigantesca, todos gostariam de morar em uma área próxima de tudo, dentro do
centro e de frente para um parque. O mesmo aconteceria, embora em diferentes
proporções, se o elevado recebesse um veículo leve sobre trilhos, ou até se
fosse removido completamente. Continua e sempre será uma imensa faixa de
território especulativo.
A visão estigmatizada da região parece imperar na
consciência coletiva. Pinta como algo sem solução e assim se encontra,
esquecida, deixada de lado. São centenas de terrenos, milhares de projetos para
uma cidade possível. Poderíamos propor moradia digna à população de baixa,
qualificar uma região inteira, promover novos usos, áreas verdes e espaços
públicos, pensar sistemas alternativos de transporte e potencializar a
acessibilidade e mobilidade urbana. Fazer com que essa imensa faixa degradada
do centro pudesse se reinventar e pudesse conviver com as limitações que o
elevado impõe e ainda assim, pudesse conviver perfeitamente com uma futura
remoção ou transformação para outro uso. Atualmente, é preferível que o elevado
permaneça no local, ocultando a falta de criatividade dos arquitetos que são
incapazes de lidar com tão delicada situação.
Veja também o ótimo texto "Minhocão e suas múltiplas interpretações" de Eliana Rosa de Queiroz Barbosa publicada no portal Vitruvius.
Veja também o ótimo texto "Minhocão e suas múltiplas interpretações" de Eliana Rosa de Queiroz Barbosa publicada no portal Vitruvius.
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