terça-feira, 11 de setembro de 2012

Minhocão, nosso muro de Berlim


Por Vinicius Libardoni

No caminho intelectual que transcorre a vida de um sujeito, encontram-se questões que geram reflexões diversas, construtoras de conhecimento e opinião. Muitas ideias que as coisas suscitam nos indivíduos nem sempre são conclusas ou remetem claridade e objetividade. Pra ser sincero, os assuntos que mais nos fazem pensar são aqueles que não resultam em algo concreto, em algo definido.

Encontrei-me com o Minhocão tantas vezes antes de empreender qualquer reflexão. Embora seja um elemento marcante na paisagem da cidade, é fato que segue sendo uma pista elevada, uma infraestrutura urbana como tantas outras. Verdade que aquela pista sinuosa que flutua sob a paisagem urbana permite diversas percepções da cidade. O ruído que ecoa nas paredes e janelas dos edifícios vizinhos parece destroça-los aos poucos, deixando a cada ano mais e mais vidraças quebradas e edifícios mortos, abandonados. Logicamente este gigante de concreto não é o morador contíguo mais desejado para seus habitantes. E nessa batalha diária com folgas aos domingos, o minhocão não desiste de sua rotina barulhenta e degradante. Com o tempo, os moradores de áreas adjacentes vão desistindo da luta e o muro vai ganhando envergadura.

O minhocão já não é somente um eixo viário, uma via elevada. É uma linha clara de ruptura com o tecido urbano, uma faixa que segrega cidades completamente distintas. Não sei se ele impede que a cidade alta invada a cidade baixa ou se repele os moradores indesejados dos bairros chiques. Não se sabe bem como opera essa muralha invisível. O fato é essa espessa linha tem forte impacto em seu entorno imediato.

Não diria que o muro de Berlin fora concebido como um território especulativo, nem mesmo o minhocão. Aqueles eram tempos de conflitos ideológicos muito mais complexos e, em nosso caso, o futuro vinha sobre rodas pneumáticas e era preciso multiplicar suas vias de acesso. Como o muro germânico, que dividia dois mundos antagônicos, o elevado não deixa de ser um grande vazio, proibido, intransitável, inacessível, ausente de pessoas, de atividades, de vida urbana. O muro era um limite intransponível, concreto. O elevado se transformou em um limite invisível de duas cidades antagônicas. É como a sombra que impede que a grama cresça, ou seja, na sombra do minhocão são os edifícios que não podem florescer.

É verdade que em uma cidade de dimensões como São Paulo, onde milhões de pessoas convivem com algum tipo de carência, não se podem desperdiçar os espaços urbanizados, dotados de infraestrutura, serviços e equipamentos públicos, acessibilidade e ofertas de emprego. Ainda que a degradação de seu entorno imediato permita a uma população de menor renda habitar um local central extremamente valorizado, essa não pode ser uma justificativa. Muito menos se uma possível transformação da área impeça esta população de permanecer no local, em uma dinâmica típica de gentrificação.

Se o elevado vai permanecer ou vai ser removido não é o foco da questão. O ponto principal deve ser mais uma questão para refletir. Que à população de baixa renda só reste a moradia em áreas degradadas e ainda estejam a mercê de uma futura expulsão causada por qualquer investimento na região, essa sim deve ser a questão do nosso foco. Dispomos de ferramentas técnicas que permitem lidar com a situação de ruído, de propor uma arquitetura adequada que transponha as limitações e permita transformar uma imensa faixa do centro em um espaço mais aprazível.

É obvio que o minhocão, e toda a vizinhança que ele arrasta consigo, se configuram como um território especulativo. Uma enorme faixa que simplesmente atravessa o centro de São Paulo (uma região extremamente valorizada da cidade). Se o minhocão fosse um High Line Park, uma espécie de parque urbano, promovendo conexões com os novos edifícios que seriam projetados, qualificando uma área atualmente carente de praças e áreas verdes a situação se transformaria da água para o vinho. Logicamente seria uma explosão de valorização dos imóveis da região, que vale a pena lembrar, já é extremamente valorizada. Uma transformação gigantesca, todos gostariam de morar em uma área próxima de tudo, dentro do centro e de frente para um parque. O mesmo aconteceria, embora em diferentes proporções, se o elevado recebesse um veículo leve sobre trilhos, ou até se fosse removido completamente. Continua e sempre será uma imensa faixa de território especulativo.

A visão estigmatizada da região parece imperar na consciência coletiva. Pinta como algo sem solução e assim se encontra, esquecida, deixada de lado. São centenas de terrenos, milhares de projetos para uma cidade possível. Poderíamos propor moradia digna à população de baixa, qualificar uma região inteira, promover novos usos, áreas verdes e espaços públicos, pensar sistemas alternativos de transporte e potencializar a acessibilidade e mobilidade urbana. Fazer com que essa imensa faixa degradada do centro pudesse se reinventar e pudesse conviver com as limitações que o elevado impõe e ainda assim, pudesse conviver perfeitamente com uma futura remoção ou transformação para outro uso. Atualmente, é preferível que o elevado permaneça no local, ocultando a falta de criatividade dos arquitetos que são incapazes de lidar com tão delicada situação.

Veja também o ótimo texto "Minhocão e suas múltiplas interpretações" de Eliana Rosa de Queiroz Barbosa publicada no portal Vitruvius.

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