domingo, 26 de fevereiro de 2012

uns versos





“Estava à toa na vida 

O meu amor me chamou 

Pra ver a banda passar 

Cantando coisas de amor” 



Frequentava a pré-escola no longínquo ano que nem me lembro de quando. Sempre fui tímido. Se virar sozinho era uma lei lá em casa. Mais nem sempre isso era possível para um garoto de seis anos. A tia da escola recomendou que trouxéssemos um par de versos de casa, pra sei lá o que fazer naquele dia primaveril e ensolarado. Mal sabíamos falar corretamente e a dona nos solicita encontrar versos, eu ia saber lá o que isso significava.

Quando não se poderiam resolver as coisas facilmente, ou arduamente, me colocava a chorar, timidamente baixo, e assim se configurava a lamentação mais dolorosa, porque todos sabiam que algo muito profundo poderia estar acontecendo, mamãe se tornava uma pessoa fantástica que ajudava a combater nossos males mais controversos. Entretanto, naquele dia, não eram conflitos existenciais que me perturbavam, somente não encontrava versos em lugar algum. Pouquíssimas vezes pedi ajuda para meus genitores nas tarefas de casa, mais aquela não era uma tarefa fácil.

É horrível quando uma criança se desespera na tentativa de decodificar uma mensagem muito complexa e um adulto, com um olhar atônito, acha um absurdo. Era uma enorme aberração a, que me fora imbuída, de encontrar versos. Não parecia tão complexo para meu pai. Ainda escorriam lagrimas silenciosas pelos meu rosto quando, decidido, meu velho me levou defronte a vitrola da casa. Vasculhou cuidadosamente entre os compartimentos que separavam seus discos. Na verdade eu nunca entendia porque daquela segregação, eram todos discos, eles deveriam estar todos juntos, sem dúvida.

Em meio aquela organização hierarquizada por sei lá o quê, saltou um disco de capa rubra, junto com o mestre, aprendi o que significavam versos e onde encontra-los, observando atentamente ele ditando enquanto acompanhava com o dedo indicador as linhas escritas, para a professora, os tais “versos”.

De toda esta história lembrava-me vagamente, uma memória já bastante sutil. E como é bom reencontrar-se com lembranças tão belas e então, delineá-las no papel. Fixando efemeramente no físico e permanentemente na memória mais sólida hoje que naquele tempo tão distante.

Versos, versos, versos eu repetia na memória, naquela época era como falar sem os outros ouvirem. “Então aqui estão os versos!” - pensei comigo mesmo. Era como achar um tesouro perdido, encontrar um amor, o primeiro amor. Aqueles eram versos para meu velho, aquilo eram versos para seu filho. As lagrimas deram lugar a um brilho estonteante, um sorriso enorme se contorcia na tarefa de copiar aqueles versos no caderno. A caligrafia deve dizer muito sobre cada indivíduo, aquela que sempre me acompanhou, é esforçada, controlada, mais é, por natureza, irregular, natural, espontânea, naquele dia, ela representava a essência do meu ser, não tenho dúvidas.

Ainda quando copiava, o “tum” que fazia o amplificador quando era ligado retumbou pela casa. A marchinha começou e um filme passava na minha imaginação, a rua, a banda, os personagens, tudo era imagem, tudo era psicologicamente representado na minha cachola. Que construção maravilhosa, que aprendizado inigualável, que infância gostosa, a melhor tarefa de casa que pude realizar.

Toda esta história é romântica, feminina e lírica, como “A banda”. É imaginada e real. Uma lembrança que se acendeu enquanto lia as páginas de “Noites Tropicais” de Nelson Motta. Que descreve apaixonadamente aquele Festival da Música Brasileira da Record no ano de 1966. Travava-se um duelo entre “música brasileira” e “música jovem”. Duas músicas sagraram-se campeãs por empate técnico, que muito mais tinha de empate social. Esta de Chico Buarque, e Disparada de Theo e Vandré, como descreve Nelson Motta: “a primeira uma marchinha lírica, na melhor tradição brasileira, feita de delicadeza e desencanto, sobre a magia de uma música que passa pela rua e sua alegria fugaz, a outra uma moda de viola estilizada, com uma letra de ritmo e sonoridade vibrantes, metaforizando as lutas de um boiadeiro conta o dono da boiada”.

Que dias belos se viviam quando se discutia música brasileira pelas ruas em todo o país, como se fosse futebol. Um dia que a paixão nacional era outra, um dia que aprendi o significado de um verso.

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. SANTOS, João, Ensinaram-me a Ler o Mundo à Minha Volta. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p. 312.
    ESPAÇO É ESCOLA. ESCOLA É MÃE

    Escola Primária: instituição destinada a corrigir nas crianças o vício impertinente de lerem na Natureza, nas Pessoas
    e nas Coisas.
    Uma criança precisa, para existir, de espaço.
    Para que uma criança crie espaço, precisa de ter mãe: para que um corpo se confronte com o seu; para que nesse
    espaço se possa desenvolver o gesto – «onde põe a pitinha o ovo?» – se metam as palavras e se organize a linguagem
    que é basicamente emoção e AMOR. Não basta comunicar pelo gesto ou pela palavra. É necessário que a
    comunicação se faça num enquadramento de linguagem que é: sistema de referências, RELAÇÃO, espaço plástico
    gerido por cada um e por todos. É a linguagem que preenche o espaço entre as pessoas; é no envolvimento da
    linguagem que se processa a comunicação.
    A criança precisa de ter ESPAÇO para descobrir e se descobrir, para se ver ao espelho, no OUTRO, nos outros,
    para que alguém lhe possa estender as mãos, para que ela receba a mensagem da cultura, para que a criança possa
    adquirir sabedoria, para que possa ter um nome, pôr nomes e criar OBRA que contribua para enriquecer o
    património cultural da comunidade. A criança precisa de ter espaço para criar tempo. Tempo para brincar, tempo que
    seja TODO, TEMPO INTEIRO. Para sentir, aprender, pensar... nas coisas sérias da vida... no brincar. Para que possa
    ler na Natureza, nas Pessoas e nas Coisas. Antes que seja tarde, antes que chegue a escola.
    A escola ensina, ou deveria ensinar, a comunicar à distância – no tempo e no espaço – mas só depois de as
    crianças e dos mestres entenderem que a comunicação escrita é um instrumento intermediário da cultura e não a
    própria cultura.

    ResponderExcluir